Os jogos de tabuleiro e os “machine-gamers”

Os jogos possuem papel importante no desenvolvimento da inteligência artificial e uma das principais razões vem da facilidade de comparar o desempenho do computador com o de jogadores humanos, o que fez gerar uma sequência de fascinantes embates homem-máquina, trazendo cada vez mais popularidade para as máquinas pensantes.

Considerado pioneiro na criação de jogos de computador, o cientista da computação Arthur Lee Samuel acreditava que ensinar máquinas a jogar poderia ser bastante útil no desenvolvimento de soluções para problemas gerais. Assim, em 1949 ele desenvolveu um programa para jogar damas com a capacidade de aprender a cada jogada, e que ficou conhecido como o primeiro programa de auto-aprendizagem do mundo. A partir da demonstração prática de um conceito que se tornaria um dos fundamentos da inteligência artificial, em 1959 Samuel introduziu o termo machine learning como o campo de estudo que dá aos computadores a capacidade de aprender sem serem explicitamente programados.

O nascimento dos algoritmos

Vinte e três anos antes, ao publicar o artigo com a concepção da máquina universal e abrir caminho para o desenvolvimento da ciência da computação, Alan Turing fez outra contribuição bastante importante, que foi a formalização do conceito de algoritmo. Em termos simples, trata-se de um conjunto de regras e procedimentos lógicos que permite a solução de um problema em um número finito de etapas. 

Podemos utilizar como exemplo uma máquina de café expresso, como as que temos em casa. Assim que inserimos a cápsula no compartimento e pressionamos o botão “ristretto”, a máquina passa a seguir uma série de procedimentos como aquecer a água, furar a cápsula, acionar válvulas e etc. A máquina está obedecendo a um algoritmo.

Um programa de computador pode ser entendido como uma série de instruções e procedimentos, ou seja, um conjunto de algoritmos. Dado o extraordinário avanço na sua capacidade e velocidade de processamento, os computadores vinham ganhando prêmios atrás de prêmios na categoria de incansáveis executores de algoritmos, até que o conceito de aprendizagem de máquina (machine learning) aparecesse com uma novidade: além de executar algoritmos, as máquinas também poderiam criá-los.

Máquinas que aprendem

Para criar máquinas que aprendem, um caminho seria entender como o nosso cérebro é capaz de reconhecer padrões. Um experimento mental simples seria ensinar a uma criança o que é uma maçã. Podemos apresentar a ela diversos exemplos de maçãs e a cada um deles afirmar: “isso é uma maçã”. Ao terminar esta etapa de treinamento, mostraríamos outras maçãs quaisquer, e ela passaria a dar respostas baseadas no padrão que ela elaborou a respeito das amostras a ela apresentadas. Poderíamos, dessa forma, desenvolver um raciocínio simples: um aluno seria treinado a partir da apresentação de exemplos e em seguida passaria a ser capaz de responder perguntas a respeito do que aprendeu. No machine learning, o aluno é o computador. 

Num exemplo análogo, uma máquina poderia ser treinada a partir da exibição de diversas tomografias, sendo uma parte delas com diagnóstico positivo e outra com diagnóstico negativo para uma determinada patogenia. A cada amostra apresentada, o computador reconfiguraria seu algoritmo de modo a corrigir seus erros e maximizar seus acertos. 

Este método é denominado treinamento supervisionado e está presente em técnicas de modelagem computacional bastante avançadas como as Redes Neurais Artificiais, que se aplicam muito bem para reconhecimento de padrões e são utilizadas nos assistentes digitais como Alexa, Siri, Google Assistant e outras diversas aplicações do nosso cotidiano.

Primeiro as damas

Uma outra razão para o fato da inteligência artificial utilizar jogos é que estes se encontram em domínios complexos mas no entanto compreensíveis. Com efeito, Samuel escolheu o jogo de damas, que possui regras relativamente simples e ao mesmo tempo contém elementos de estratégia. Jogos mais complexos exigiriam maior poder de fogo dos algoritmos (lembrando que estamos na década de 1950).

Quase meio século depois, aconteceu o mais emblemático confronto homem-máquina num jogo bastante mais sofisticado: o xadrez. Garry Kasparov, campeão mundial de 1985 a 2000, considerado um dos maiores enxadristas de todos os tempos, foi desafiado a enfrentar um supercomputador da IBM chamado Deep Blue no ano de 1996. Kasparov venceu o confronto por 4 a 2. Um ano depois, foi desafiado a uma revanche contra uma versão atualizada do programa, e desta vez a máquina foi vencedora pelo placar de 3,5 a 2,5 (com duas vitórias, uma derrota e três empates) tornando-se o primeiro computador a vencer um jogador de xadrez num jogo com regras de tempos oficiais. A máquina possuía como recursos o padrão de jogo de mais de 700 mil partidas de mestres e grandes mestres e uma capacidade de processamento que permitia a simulação de um número de possíveis jogadas bastante acima da capacidade humana. 

O jogo de tabuleiro mais complexo já inventado

Em 1997, assim que o Deep Blue conquistou a inédita vitória, o astrofísico e entusiasta do jogo Go do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, Nova Jersey, o dr. Piet Hut, afirmou: “Talvez ainda sejam necessários mais cem anos para que o computador ganhe uma partida de Go, ou ainda mais do que isso”.

O Go é um jogo de tabuleiro de origem chinesa e fazia parte das quatro grandes artes da China antiga, junto da poesia, caligrafia e Guquin (um instrumento de corda). Apesar de sua aparente simplicidade, foi considerada dentre elas a mais difícil de aprender, compreender e dominar. Seu nome em chinês é Weiqi, que significa “jogo de cercar território”, e apesar de suas primeiras referências datarem do século VI a.C., acredita-se que ele tenha sido criado há cerca de 5 mil anos pelo imperador Yao como instrumento para educar seu filho em concentração, disciplina e equilíbrio, e que tenha sido utilizado por generais para desenhar estratégias de guerra. Os países de maior popularidade do Go são a China, Japão, Coreia e Taiwan, que mantêm comunidades de jogadores profissionais classificados de acordo com seu nível. O termo dan, denominação do grau de maestria, foi criado para o Go e depois emprestado às artes marciais como o Judô e Aikidô. 

O Go é considerado o jogo de tabuleiro mais complexo já inventado, com um número incomparável de opções de movimentos, e que valoriza a intuição e a criatividade. Esses argumentos sustentavam a afirmação de Hut, entretanto no ano de 2016 um outro emblemático evento representou mais um salto importante na evolução da inteligência artificial. Uma empresa do Google chamada DeepMind desenvolveu o programa AlphaGo e seus cientistas lançaram um desafio ao coreano Lee Sedol, jogador profissional do nono dan e campeão mundial de Go. O computador venceu por 4 a 1.

A partida realizada em Seul foi vista por mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo e representou uma conquista marcante para o campo da inteligência artificial, rendendo ao AlphaGo (baseado em Redes Neurais Artificiais) o certificado de jogador profissional do nono dan, a mais alta condecoração. A vitória foi considerada surpreendente. Mas não parava por aí: um ano depois foi lançada a versão AlphaGo Zero. Diferentemente das versões anteriores, que baseavam seu aprendizado a partir da análise de milhares de jogos amadores e profissionais, o AlphaGo Zero aprendeu a jogar simplesmente jogando contra si mesmo. Dessa forma, superou o desempenho de todas as versões anteriores e se tornou o jogador mais forte de Go de todos os tempos.

Conclusão

Entendemos que as máquinas executam algoritmos e também são capazes de criá-los, ganhando a habilidade de aprender. Os “machine-gamers” representam não somente uma alavanca para o desenvolvimento da IA, mas também um importante símbolo da competição entre os humanos as máquinas para a resolução de problemas, estes cada vez mais complexos. Se de fato os computadores se mostrarem melhores do que os humanos no desenvolvimento de sua capacidade de dar respostas, será que não caberia a nós nos desenvolvermos na nossa capacidade de fazer perguntas? Talvez esta venha a ser a habilidade mais preciosa no futuro.

por Paulo André
paulo.andre@culturetechies.com

Para quem gosta do tema, recomendo o documentário AlphaGo (2017), de Greg Kohs, que mostra de forma brilhante o embate homem-máquina no jogo Go (https://www.imdb.com/title/tt6700846/?ref_=fn_al_tt_1)

alphago

O link ao lado aponta para um vídeo muito bacana de uma máquina universal (Turing) implantada a partir de Lego (https://youtu.be/FTSAiF9AHN4)

6 comentários sobre “Os jogos de tabuleiro e os “machine-gamers”

  1. Parabéns Paulo! Mais um artigo colocando homens e máquinas frente a frente.
    Como curiosidade, o filme 2001: Uma odisseia no espaço (1968) de StanleyKubrick trouxe pela primeira vez , quase 30 anos antes de Deep Blue derrotar Kasparov, a idéia do computador (Hal 9000) conseguir vencer um humano no xadrez.
    O xadrez sempre teve uma aura de disputa pura de intelectos, e no filme é usado para o público saber claramente da superioridade intelectual de Hal.
    Abraços,
    Fernando Toledo

    http://razaodeaspecto.com/movies/2001-uma-odisseia-1968-a-odisseia-humana/

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    1. Obrigado, Fernando!
      Muito legal você ter lembrado do Hal. É realmente incrível o quanto a ficção científica tem o poder de antever realidades e Arthur Clarke junto a Kubrick foram geniais nisso.
      Um grande abraço!

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  2. Ótimo artigo Paulo. A solução via bigdata tornou possível o resultado no Go. A estimativa é de que o tabuleiro do jogo possibilite 2×10^(170) combinações! Pqp muito zero. Ou seja, os jogadores experientes seguem estratégias próprias e intuição. Impossível colocar em um algoritmo tamanha complexidade. Como escreveu Andre McAfee estamos vivendo a segunda era das máquinas, com Bigdata, capacidade computacional e redes interconectadas. Bora nos prepararmos para ela. Abs

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