Imitar o cérebro ou conectar-se a ele

A neurociência exerce enorme fascínio sobre o homem dado o seu ambicioso propósito de compreender o funcionamento do cérebro, e é possivelmente o campo de estudo de maior diversidade de áreas de conhecimento. Ela se estende a campos como a filosofia, biologia, psicologia, ciência da computação e medicina, dentre muitos outros. Estas disciplinas emprestam conhecimento umas às outras, atuando de forma colaborativa para desvendar aspectos da aprendizagem, memória, comportamento e consciência. Lembrando que tecnologia se define como a aplicação prática do conhecimento científico, a neurotecnologia desponta como uma área extremamente promissora que se utiliza dos conhecimentos da neurociência para produzir inovações e ganhar cada vez mais a atenção de empreendedores, centros de pesquisa, investidores e startups ao redor do mundo. Suas aplicações se iniciam pelo tratamento de doenças e vão até a criação de tecnologias de aperfeiçoamento humano.

Uma breve história do cérebro

É bastante intuitivo que algo no corpo humano seja o responsável por coordenar suas atividades, mas para nossos ancestrais não foi óbvio de imediato que o cérebro cumpria este papel. Há quatro mil anos acreditava-se que o coração era o centro do intelecto enquanto que o fígado abrigava os sentimentos e o estômago era o centro da esperteza. Os antigos egípcios compartilhavam dessa ideia e preservavam o coração no processo de mumificação, enquanto que o cérebro era descartado. O protagonismo do cérebro teve sua origem no século V a.C. pelo filósofo grego Alcmeão de Crotona, que o descreveu como o centro do processamento das sensações e da composição do pensamento, e Herófilo da Calcedônia (335 a.C. – 280 a.C) foi um dos primeiros a realizar sua dissecação e descobrir os nervos.

No século II d.C., o médico romano Galeno, cirurgião responsável por tratar gladiadores, a partir da observação de lesões na coluna vertebral se convenceu de que o cérebro estava no comando do corpo. Ele considerava a medula espinhal uma extensão do cérebro e notou que os nervos se ramificavam a partir dela em direção aos membros. Galeno foi capaz de distinguir os dois tipos de nervos: sensoriais e motores, mas o meio pelo qual as informações viajam pelo sistema nervoso ainda permanecia um mistério. Ele defendia a tese que os nervos eram ocos e que transportavam o pneuma, um espírito animal que se encarregava de levar uma informação sensorial para o cérebro e também de comandar o movimento do músculo. Essa ideia duraria mil e quinhentos anos.

O filósofo, matemático e cientista René Descartes defendia a teoria dualista, na qual mente e corpo são distintos, embora intimamente ligados. Para descrever o corpo (res extensa), ele utilizava um modelo mecanicista no qual todas as suas funções poderiam ser explicadas por leis da física. Para a mente, entretanto, esta responsável pelo pensamento, imaginação, vontade e consciência, ele defendeu a existência de uma alma (res cogitans), um tipo de substância mental.

Até meados do século XVIII não se conhecia o processo de transmissão de informação entre o cérebro, nervos e músculos. O papel da eletricidade no sistema nervoso foi observado pela primeira vez por Luigi Galvani, considerado precursor no estudo da bioeletricidade. A prova de que é realmente uma forma de eletricidade que percorre os nervos e estimula os músculos a se contraírem veio em meados do século XIX, e o experimento conclusivo aconteceu em 1921, realizado pelo fisiologista alemão Otto Loewi. 

Ainda sabemos pouco

O conhecimento atual do sistema nervoso nos permite a compreensão física, mecânica e bioquímica de sua estrutura em redes de células organizadas em circuitos funcionais que processam informação e comandam o funcionamento do corpo. Embora nada simples, investigar a atividade de nervos motores e sensoriais é mais fácil do que explicar o que acontece inteiramente no cérebro – sem manifestações no resto do corpo – como pensamento, memória, sonho, imaginação e criatividade. Neste campo, denominado neurociência cognitiva, ainda nos encontramos nos primeiros passos, pois antes do desenvolvimento das tecnologias de imagiologia cerebral, em meados do século XX, estes eventos estavam completamente escondidos da pesquisa em neurobiologia. Mas o que se acumulou de conhecimento a respeito do sistema nervoso já nos inspiraria a dar um passo além.

Neurônios artificiais

O passo natural seria a criação de modelos computacionais do cérebro, e uma cooperação entre as áreas da neurobiologia e da ciência da computação tornou isso possível. A primeira delas contribuiu com o entendimento de como nossas células nervosas se organizam em circuitos funcionais para processar informação, e a segunda contribuiu para o desenvolvimento de modelos computacionais que simulassem estas estruturas. 

Modelos são representações simplificadas da realidade e se utilizam da matemática como linguagem natural, a qual parte de um conjunto de símbolos para representar objetos, fenômenos ou processos físicos de maneira lógica e objetiva. Dessa maneira, criou-se uma representação matemática das redes biológicas, denominada Redes Neurais Artificiais. As RNA´s surgiram na década de 1940, da colaboração entre o neurofisiologista Warren McCulloch e o matemático Walter Pitts. Num artigo publicado em 1943, eles apresentaram um modelo simples de uma rede neural usando circuitos elétricos e descreveram um modelo computacional baseado em algoritmos. Neste momento nasce a neurocomputação, e a partir de então seu crescimento vem se mostrando extraordinário, suportado pelo aumento exponencial da capacidade de processamento. Mas ainda há um bom caminho a percorrer. Atualmente as RNA´s mais avançadas têm alguns milhões de unidades neurais enquanto que o cérebro humano possui cerca de 84 bilhões de neurônios, com outros graus de complexidade ainda não modelados. De qualquer forma, o caminho está traçado.

Imitar o cérebro ou conectar-se a ele

Enquanto que a inteligência artificial busca imitar o cérebro humano, outro campo da neurociência busca desenvolver interfaces cérebro-máquina baseadas no mapeamento da atividade cerebral. A primeira tecnologia capaz de registrar a atividade elétrica do cérebro é a eletroencefalografia (EEG), e a primeira imagem gráfica destas correntes elétricas foi obtida pelo psiquiatra alemão Hans Berger em 1924. Este método ainda é amplamente utilizado no diagnóstico de epilepsia e distúrbios do sono. Atualmente é possível comprar em sites como a a Amazon.com sensores EEG bastante acessíveis para quem estiver disposto a se aventurar a criar aplicações BCI (Brain Computer Interface), como o OpenBCI, NeuroSky e Emotiv. As tecnologias ainda estão longe de ser perfeitas, mas o conceito já está estabelecido e os avanços são notáveis.

Há bastante tempo a leitura da mente é popular na ficção científica e parece que a tecnologia de ressonância magnética funcional seria o caminho para que isso acontecesse na realidade. A RMF é capaz de registrar variações no fluxo sangüíneo que ocorrem durante a atividade neural, permitindo assim o mapeamento do cérebro. Esta tecnologia tem sido amplamente utilizada em projetos de pesquisa e seu principal objetivo é detectar correlações entre a ativação cerebral (e sua localização) e a tarefa que o indivíduo executa durante a leitura dos sinais, para compreender aspectos relacionados à cognição como a memória e a aprendizagem.

Adicionalmente ao avanço da capacidade computacional, conceitos como cloudcomputing, opensource e crowdsourcing têm contribuído de forma impressionante para o desenvolvimento da neurotecnologia, e em seguida há um exemplo para cada um deles. A CloudBrain é uma plataforma de computação em nuvem para análise e visualização de dados provenientes de sensores neurais em tempo real. A OpenBCI fornece códigos abertos de interfaces cérebro-computador para que qualquer geek possa desenvolver aplicações, e ainda disponibiliza um scaner cerebral para ser impresso em casa (basta ter uma impressora 3D). A NeurotechX é uma comunidade internacional para entusiastas da neurotecnologia que reúne mais de 2.300 membros, dentre eles educadores, empreendedores e experts, e promove colaboração em diversos tipos de pesquisas na área.

Outro campo emergente refere-se às tecnologias de melhoramento humano (HET, ou Human Enhancement Technologies) que contemplam implantes neurais para melhorar resiliência, aumentar memória e desenvolver novas capacidades. Estas tecnologias ainda precisam superar barreiras científicas e éticas, e, à exceção de ensaios como a tecnologia de realidade aumentada, ainda se restringem à ficção científica. Por enquanto.

Conclusão

A neurociência obteve importante avanço na investigação das atividades dos nervos motores e sensoriais, o que permitiu desenvolver tratamento para doenças e inaugurar a neurocomputação, mas para as atividades puramente mentais como pensamento, memória, consciência, imaginação e criatividade – estudadas pela neurociência cognitiva – ela ainda se encontra nos primeiros passos de uma longa jornada. Embora filósofos e psicólogos desenvolvessem importantes teorias sobre memória e pensamento, coube à neurobiologia tentar descobrir o que acontece no sistema nervoso quando formamos e recuperamos lembranças e como formamos consciência, tarefas que ainda estão longe se se completar. Mas as revoluções simultâneas na tecnologia da informação e na biotecnologia se encontram dispostas a mudar este passo, e de forma colaborativa.
Uma das principais questões ainda sem reposta é se a mente e a consciência são inteiramente produzidas pela ação dos neurônios ou se há algo mais – semelhante a uma alma – que separa as atividades do cérebro. Voltaríamos a Descartes com seu modelo dualista e seu res cogitans? Ainda não sabemos.

por Paulo André
paulo.andre@culturetechies.com

 

Seguem duas sugestões de filme que falam sobre capacidades do cérebro e funções cognitivas: “Inception” (2010), de Christopher Nolan…
(https://www.imdb.com/title/tt1375666/?ref_=nv_sr_1)
inception

… e  “Limitless” (2011), de Neil Burger
(https://www.imdb.com/title/tt1219289/?ref_=fn_al_tt_2)
limitless

Deixe um comentário